sábado, 26 de junho de 2010

Entre a festa e o sacrifício

Texto de Hugo Dias sobre o livro "A Esquerda Radical" de Miguel Cardina.

Vírus #9 - Maio/Jun 2010

«A Esquerda Radical» transporta-nos para o contexto de radicalização política dos anos sessenta e setenta e para a constelação de reflexões ideológicas, práticas políticas e cambiantes organizativas que deste emergiram. Trata-se de uma obra concisa, não fosse ela parte de uma colecção intitulada «Biblioteca Mínima», mas plena de densidade e rigor histórico, que procura reconstituir a trajectória destas esquerdas, detendo-se, com particular atenção, na realidade portuguesa que antecede o 25 de Abril.

O primeiro capítulo procura delinear os grandes traços característicos da esquerda radical, «anotando os veios fundamentais de um complexo ideológico que oscilou precisamente entre a festa e o sacrifício, o prazer e o ascetismo, a renovação teórica e a rigidez retórica». Não obstante a pluralidade, «um notório jogo de semelhanças agrupava esse feixe plural, suportado na crítica aos partidos comunistas tradicionais, na activação de um internacionalismo de novas cores e na tentativa de alargamento do «político» a domínios considerados pouco antes como exclusivamente privados».

O restante da obra centra-se na singularidade histórica portuguesa, onde a constituição da diversidade de matizes políticos da esquerda radical se faz necessariamente no debate sobre as estratégias de luta contra o Estado Novo e (posteriormente) a Guerra Colonial, e no recrudescimento da contestação operária e estudantil; nos ecos da radicalização politica internacional e na sua tradução para o contexto nacional, cerzindo de forma singular a «tensão entre uma ambiência mais libertária proveniente do radicalismo da época e as necessidades e virtualidades da rigidez organizativa, frequentemente transmutadas do campo da política para o campo da moral e dos costumes», o «mudar a vida» de Rimbaud e o «mudar o mundo» de Marx; na definição político-ideológica e construção organizativa, reflectindo cismas internacionais e «geografias imaginadas», em ruptura e demarcação com a tradição do Partido Comunista Português.

O capítulo «O Maoísmo em Portugal» é um laborioso rastreio da diversidade das expressões públicas desta corrente, com particular destaque para três percursos específicos: o de Francisco Martins Rodrigues, com a sucessiva criação da FAP, CMLP e fundação do PCP (m-l) em 1970; do MRPP, no mesmo ano; e da OCMLP em finais de 1972. A inclusão de um diagrama das «organizações maoistas em Portugal» torna-se numa ajuda inestimável para uma melhor percepção da cronologia e das interelações existentes no turbulento complexo maoista português. Em «as outras correntes», agrupa, mais por «comodidade expositiva do que pela partilha de um substrato ideológico comum» o percurso da família política trotskista, das expressões do anarquismo, do «socialismo radical», e dos grupos adeptos da luta armada.

«A Esquerda Radical» é, portanto, um livro de referência para os interessados pela temática, numa edição sensível ao pormenor da Angelus Novus.

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