sábado, 26 de junho de 2010

Desafios do sindicalismo

OPS! Revista de Opinião Socialista
Nº 001 . Julho 2008
Trabalho e Sindicalismo


Historicamente, a emergência de sistemas de relações laborais correspondeu a uma tentativa de regular a utilização do factor trabalho, uma das mercadorias fictícias, de forma que esta não ficasse totalmente à mercê dos mecanismos de mercado. Tratou-se, no entanto, de um processo longo e não isento de conflitos. Neste contexto, os sindicatos são indissociáveis, por um lado, da luta pela desmercadorização institucional do Trabalho, e por outro da luta pela inclusão dos trabalhadores em termos de direitos sociais, económicos e políticos.

Assistimos, desde os anos 70, a uma “nova grande transformação” (Munck, 2002), com impactos profundos ao nível cultural, social, económico e político. O termo de comparação são os Trinta gloriosos anos, e o seu “compromisso político” entre Capital e Trabalho, que procurava criar um modo de regulação capaz de acomodar um crescimento longo e sustentado das economias capitalistas ocidentais. Do léxico deste período fazem parte a Pax Americana, Bretton Woods e o Keynesianismo.

É também neste período que se assiste à constituição de sistemas de relações laborais tal como os conhecemos: reconhecimento da liberdade de representação dos trabalhadores, negociação tripartida, institucionalização dos conflitos de classe. Os trabalhadores nos países ocidentais saíram reforçados no pós-guerra. Os níveis de sindicalização subiram quantitativamente, bem como um reforço de confiança geral na capacidade da classe operária organizada de conduzir os destinos da sociedade em nome de um bem comum. Um novo compromisso entre Capital e Trabalho teria que substituir o laissez-faire do dogma económico: em troca de aumento dos salários reais associados à produtividade e do Estado-Providência, os sindicatos comprometiam-se com a paz social.
A queda das taxas de lucro entre 1968 e 1973, e a recessão generalizada de 1973 e 1974 marcam o inicio desta transição. O seu decréscimo não teria decorrido de obsolescência tecnológica ou elevados níveis salariais mas de crescente concorrência internacional, atestando o excesso de capacidade de produção existente. Inicia-se um novo período, em termos económicos, em que a estratégia dos países desenvolvidos e as empresas para restabelecer a competitividade se cifra na tentativa de redução de custos através da introdução de inovações tecnológicas e organizacionais, da redução da dimensão (nomeadamente de efectivos), desconcentração, descentralização e subcontratação; de processos de reconversão de sectores tradicionais, flexibilização da gestão da mão-de-obra e individualização das relações laborais.

É neste contexto que se fala da crise dos pilares da relação salarial Fordista. O Fordismo, mais do que um modelo de produção, era um modo de regulação social. Conceitos como os de pleno emprego e estabilidade; segurança e protecção social, regulação do mercado de trabalho começam a ser postos em causa pela empresas e governos nacionais. O compromisso político dos trinta gloriosos anos tinha-se quebrado.

Impactos da transição
Robert Castel identifica três aspectos característicos do período de transição da sociedade salarial fordista: (1) a desestabilização dos estáveis, (2) a instalação na precariedade, (3) e existência de supranumerários. (Castel, 1995). Embora interligados, qualquer um destes aspectos interpela de forma séria o sindicalismo tradicional de grande parte do século XX:

(1) O sindicalismo tradicional assentava fundamentalmente no operariado qualificado de grandes empresas do sector industrial. As reestruturações produtivas acima aludidas bem como a crescente translação da economia para sectores produtivos pós-industriais, conduziu ao desaparecimento das grandes concentrações industriais. Este processo de fragmentação de colectivos laborais que se caracterizavam pela estabilidade e homogeneidade e forte cultura identitária, conduz à erosão da tradicional base de apoio dos sindicatos. Os trabalhadores estáveis, outrora a força organizativa do sindicalismo, diminuem, e vivem a ameaça constante da perda de emprego.

(2) A maioria do emprego criado assume a forma contratual de trabalho atípico, como é o caso dos contratos de trabalho a prazo e trabalho temporário. Tal tem necessariamente consequências ao nível da precarização e individualização das relações de trabalho.
O debate em torno da flexibilidade surge como contraponto à rigidez alegadamente existente. Convém no entanto referir neste momento que uma primeira abordagem do conceito permite distinguir entre flexibilidade produtiva e flexibilidade de trabalho. A primeira remete para as transformações tecnológicas e organizacionais ocorridas com vista a uma melhor adaptação às exigências externas dos mercados. O novo paradigma organizacional seria o da especialização flexível por oposição ao modelo de produção taylorista-fordista, com pouca capacidade de oferecer resposta rápida às variações externas. A segunda procura apreender as alterações relativas às condições de emprego e de trabalho, compreendendo a capacidade de ajustar e alterar modos de recrutamento, de contratação e estatutos de emprego, de mobilidade interna e remuneração, de conteúdos de tarefas e qualificações, de tempos de trabalho e de níveis de protecção social” (Casaca, 2005).

Embora conceptualmente distintas, ao discurso do sucesso da flexibilidade produtiva foi sempre associada a necessidade de um novo marco de regulação laboral, de modo a que à nova empresa “flexível” se ajustasse um trabalhador igualmente flexível.
As duas últimas décadas, caracterizam-se assim por profundas alterações nas legislações nacionais visando a flexibilização das regras vigentes em ordem a favorecer a diversidade contratual. Este processo longo de transformação da arquitectura institucional das relações laborais conduziu paulatinamente à difusão da diversidade contratual. A flexibilidade laboral tornou-se protagonista central sendo objecto de discursos antagónicos, de cariz ideológico e económico, por parte de empresas, académicos, sindicatos e trabalhadores. Dado o seu carácter polissémico e proteiforme é um conceito que invoca diversas dimensões, interpretações e significados. Como tal, para além dos seus inúmeros defensores, não se encontra isento de críticas, de carácter instrumental, conceptual e ideológico.

Para Serge Paugam a situação de precariedade “caracteriza-se tanto por uma forte vulnerabilidade económica como por uma restrição, pelo menos parcial, dos direitos sociais, já que estes últimos são fundados em grande parte na estabilidade do emprego. O assalariado (precário) ocupa, por isso, uma posição inferior na hierarquia dos estatutos sociais definidos pelo Estado-providência” (Paugam, 2000).

(3) Os supranumerários são a multidão de excluídos da relação de emprego. No novo período o crescimento económico convive bem com a manutenção de um desemprego estrutural criando “inúteis para o mundo”. Estas “não-forças sociais” (Castel, 1998 [1995]) são os desempregados de longa duração, os pobres, todos aqueles grupos sociais que não têm capacidade de fazer ouvir a sua voz na denúncia da sua condição, e os quais têm muito poucas hipóteses de voltar a ser incluídos.

Este triptico salda-se no alargamento drástico da insegurança social, não apenas na dimensão objectiva do vínculo contratual, mas também na perspectiva subjectiva e nas trajectórias individuais dos trabalhadores. Não obstante a dificuldade na obtenção de dados fidedignos, os indicadores apontam fundamentalmente para trajectórias de mobilidade lateral e para uma fraca mobilidade ascendente de emprego. Estudos recentes em Portugal, comparando trabalhadores estáveis e precários, revelam uma realidade heterogénea, mas também algumas regularidades: são mais afectados os menos escolarizados, (embora o desemprego de licenciados seja uma realidade crescente) jovens e mulheres; são estes que apresentam um menor grau de satisfação, menor confiança no futuro profissional e maior vontade manifesta em mudar de emprego; são também os que apresentam níveis mais baixos de sindicalização.

Obstáculos e potencialidades
A classe trabalhadora “fragmentou-se, heterogeneizou-se e complexificou-se” ainda mais. Consequentemente, verificou-se a desagregação e fragmentação das identidades dos trabalhadores mercê de processos de crescente diferenciação, segmentação e flexibilização dos mercados de trabalho, a descentralização da produção e a precarização da relação salarial (Paugam, 2000).

Consequentemente os sindicatos têm demonstrado dificuldade em lidar com as mudanças ocorridas no sistema produtivo e como tal de adaptar a sua estratégia e organização às necessidades de grupos cada vez mais heterogéneos. A consequência mais visível disso é a diminuição do número de filiados, da sua influência social, e da eficácia do reportório tradicional da acção colectiva.

Naturalmente, o mundo do trabalho não saiu ileso desta transformação a todos os níveis histórica. O debate sobre a renovação da acção sindical tem tido pouco eco em Portugal. As reflexões e críticas sobre o seu papel têm partido mais das forças sociais que lhe são hostis, do que gerado por sua própria iniciativa. Encontra-se portanto num contexto defensivo face às sucessivas reformas governamentais, e à cultura patronal predominantemente anti-sindical. Para além disso, dado a sua principal capacidade de mobilização se centrar no sector público e (ainda) estável, sofrem de um crescente isolamento face ao discurso produzido que considera esses sectores como privilegiados e defendendo interesses corporativos.

Um primeiro aspecto deste debate é considerar que, embora os sindicatos tenham experimentado dificuldades, não lhes pode ser negado o carácter reflexivo de um actor social, que procura desenvolver novas perspectivas organizativas, politicas e ideológicas com vista a procurar manter o seu papel de representação dos trabalhadores assalariados. Importa portanto desconstruir a inevitabilidade das forças da globalização econômica, e o acantonamento do factor Trabalho ao rótulo de localizado, estático, conservador e defensivo na sua acção, por oposição ao Capital, caracterizado como global, dinâmico, criativo e ofensivo.

A distinção feita por Steven Lukes (1975) de três dimensões do poder pode servir para ilustrar a forma como o actor mais poderoso dentro de um sistema ocupa uma posição hegemónica, controlando a forma como esses assuntos e problemas são definidos e reflectidos. Tendo em conta esta perspectiva, os sindicatos, actualmente, possuem apenas a capacidade de assumir conflitos superficiais (1) com os empregadores e Estado sobre os termos das reformas neoliberais do mercado de trabalho e segurança social, não conseguindo desafiar quer a agenda de reformas (2) quer a ideologia neoliberal que lhes dá fundamento (3). Mas, e aí convergimos com Hyman (2001), trata-se, sobretudo, de poder influenciar o debate ideológico, ou seja, poder pesar na batalha das ideias. O desafio é, então, como retornar à ofensiva.

Em segundo lugar, estes debates, marcados por uma pluralidade de visões e orientações teóricas, sugerem uma nova estratégia de acção que expanda o sindicalismo para fora do seu campo tradicional de actuação, i.e., relações de produção e escala nacional. Trata-se afinal de recuperar alguns princípios que estiveram na génese do próprio sindicalismo: a luta pela inclusão dos trabalhadores como cidadãos de pleno direito e a solidariedade internacionalista.

De entre as concepções surgidas, a noção de sindicalismo de movimento social parece lidar com as transformações ocorridas e com os desafios que se colocam ao sindicalismo (Waterman, 2002). O alargamento do campo de acção significa, por um lado, conceber a prática politica de uma forma transescalar (dimensão “vertical”), considerando-os como espaços que não são mutuamente exclusivos, nem hierarquizáveis (Munck, 2002); e por outro lado, ao nível da agenda politica (dimensão “horizontal”), construindo campanhas dirigidas a sectores mais fragilizados da população trabalhadora, maior abertura a outras temáticas e aliança com novos sujeitos políticos e movimentos sociais.

Em terceiro lugar, a alteração do perfil de acção sindical, num contexto desfavorável de hostilidade patronal e governamental, deve corresponder a uma estratégia activa com repercussões ao nível das orientações políticas, mas também no que concerne à mudança organizacional, funcionamento democrático, alocação de meios humanos e recursos materiais, bem como renovação das formas de acção política.

Interrogações…
Que dizer então sobre a situação actual? Algumas questões se colocam de forma a reflectir mais concretamente sobre as dimensões acima abordadas.

Offe e Wiesenthal (1980), ainda sem grande percepção da “nova grande transformação” que se iniciava, falavam da dificuldade na agregação de interesses entre os trabalhadores. Enquanto que para os detentores do capital seria mais fácil definirem os seus interesses comuns (maximizar o seu retorno); os trabalhadores, homens e mulheres, mesmo quando unidos, continuam sendo indivíduos com necessidades e interesses diferentes, a partir dos quais uma nova identidade colectiva deve ser forjada.

Sendo a situação actual ainda mais complexa, importaria perguntar: Terá o decréscimo do número de sindicalizados sido revertido ou não? Em qualquer dos casos, será que as novas adesões se concentram em sectores e empresas com uma densidade sindical já elevada, ou se estendeu a outros de maior fragilidade? Será que existe uma estratégia clara por parte dos sindicatos de chegar a trabalhadores precários, renovando uma acção que se baseia actualmente mais na profissão que na condição de trabalhador? E relativamente a jovens, mulheres e trabalhadores imigrantes? Que argumentário, meios e recursos são empregues neste processo? A negociação colectiva procura abranger estes trabalhadores ou tem sido utilizada sobretudo para proteger os trabalhadores estáveis?
Num país com: (1) crescente precariedade laboral, elevada percentagem de população trabalhadora empregada pobre; desemprego estrutural, e significativa economia paralela; (2) em que existem elevados indicadores de desigualdade social, baixos níveis de protecção social e retracção da cobertura dos serviços públicos; (3) e uma crónica fraqueza dos seus movimentos sociais; o sindicalismo português se conduzisse uma reorientação estratégica, poderia servir de catalizador para a mobilização mais ampla na sociedade portuguesa, em torno de uma agenda política que vá para além da defesa dos sectores estáveis empregados. Importaria aqui questionar criticamente se têm havido iniciativas sólidas de articulação entre outras organizações sociais e políticas, bem como movimentos sociais. Qual a razão do impasse do Fórum Social Português? Porque será que as questões da precariedade têm tido mais visibilidade na opinião pública devido à acção de grupos informais de trabalhadores precários como o FERVE, o Precários Inflexíveis e a Parada Mayday? Não seria útil e necessária uma maior colaboração entre estes grupos e sindicatos num objectivo que lhes é comum?

Os tempos que se avizinham são ainda de dificuldade para o sindicalismo. A criatividade e um agudo sentido táctico e estratégico serão fundamentais para que recuperem a iniciativa e marquem indelevelmente a agenda política. Aqui, as palavras proferidas há mais de uma década por Boaventura de Sousa Santos parecem ter ainda uma actualidade gritante. “O novo sindicalismo tem de ser pragmaticamente de contestação e de participação. A opção entre uma outra estratégia será ditada pelos seguintes três critérios, dispostos por ordem decrescente de valência: (1) a opção que melhor evita a dessindicalização e o sindicalismo defensivo; (2) a opção que mais eficazmente divide os patrões em termos de adesão ao capitalismo civilizado; (3) a opção que garante a maior neutralidade possível de um Estado que nunca é neutral.” (Santos, 2004 [1995]).

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