sábado, 26 de junho de 2010

Desafios do sindicalismo

OPS! Revista de Opinião Socialista
Nº 001 . Julho 2008
Trabalho e Sindicalismo


Historicamente, a emergência de sistemas de relações laborais correspondeu a uma tentativa de regular a utilização do factor trabalho, uma das mercadorias fictícias, de forma que esta não ficasse totalmente à mercê dos mecanismos de mercado. Tratou-se, no entanto, de um processo longo e não isento de conflitos. Neste contexto, os sindicatos são indissociáveis, por um lado, da luta pela desmercadorização institucional do Trabalho, e por outro da luta pela inclusão dos trabalhadores em termos de direitos sociais, económicos e políticos.

Assistimos, desde os anos 70, a uma “nova grande transformação” (Munck, 2002), com impactos profundos ao nível cultural, social, económico e político. O termo de comparação são os Trinta gloriosos anos, e o seu “compromisso político” entre Capital e Trabalho, que procurava criar um modo de regulação capaz de acomodar um crescimento longo e sustentado das economias capitalistas ocidentais. Do léxico deste período fazem parte a Pax Americana, Bretton Woods e o Keynesianismo.

É também neste período que se assiste à constituição de sistemas de relações laborais tal como os conhecemos: reconhecimento da liberdade de representação dos trabalhadores, negociação tripartida, institucionalização dos conflitos de classe. Os trabalhadores nos países ocidentais saíram reforçados no pós-guerra. Os níveis de sindicalização subiram quantitativamente, bem como um reforço de confiança geral na capacidade da classe operária organizada de conduzir os destinos da sociedade em nome de um bem comum. Um novo compromisso entre Capital e Trabalho teria que substituir o laissez-faire do dogma económico: em troca de aumento dos salários reais associados à produtividade e do Estado-Providência, os sindicatos comprometiam-se com a paz social.
A queda das taxas de lucro entre 1968 e 1973, e a recessão generalizada de 1973 e 1974 marcam o inicio desta transição. O seu decréscimo não teria decorrido de obsolescência tecnológica ou elevados níveis salariais mas de crescente concorrência internacional, atestando o excesso de capacidade de produção existente. Inicia-se um novo período, em termos económicos, em que a estratégia dos países desenvolvidos e as empresas para restabelecer a competitividade se cifra na tentativa de redução de custos através da introdução de inovações tecnológicas e organizacionais, da redução da dimensão (nomeadamente de efectivos), desconcentração, descentralização e subcontratação; de processos de reconversão de sectores tradicionais, flexibilização da gestão da mão-de-obra e individualização das relações laborais.

É neste contexto que se fala da crise dos pilares da relação salarial Fordista. O Fordismo, mais do que um modelo de produção, era um modo de regulação social. Conceitos como os de pleno emprego e estabilidade; segurança e protecção social, regulação do mercado de trabalho começam a ser postos em causa pela empresas e governos nacionais. O compromisso político dos trinta gloriosos anos tinha-se quebrado.

Impactos da transição
Robert Castel identifica três aspectos característicos do período de transição da sociedade salarial fordista: (1) a desestabilização dos estáveis, (2) a instalação na precariedade, (3) e existência de supranumerários. (Castel, 1995). Embora interligados, qualquer um destes aspectos interpela de forma séria o sindicalismo tradicional de grande parte do século XX:

(1) O sindicalismo tradicional assentava fundamentalmente no operariado qualificado de grandes empresas do sector industrial. As reestruturações produtivas acima aludidas bem como a crescente translação da economia para sectores produtivos pós-industriais, conduziu ao desaparecimento das grandes concentrações industriais. Este processo de fragmentação de colectivos laborais que se caracterizavam pela estabilidade e homogeneidade e forte cultura identitária, conduz à erosão da tradicional base de apoio dos sindicatos. Os trabalhadores estáveis, outrora a força organizativa do sindicalismo, diminuem, e vivem a ameaça constante da perda de emprego.

(2) A maioria do emprego criado assume a forma contratual de trabalho atípico, como é o caso dos contratos de trabalho a prazo e trabalho temporário. Tal tem necessariamente consequências ao nível da precarização e individualização das relações de trabalho.
O debate em torno da flexibilidade surge como contraponto à rigidez alegadamente existente. Convém no entanto referir neste momento que uma primeira abordagem do conceito permite distinguir entre flexibilidade produtiva e flexibilidade de trabalho. A primeira remete para as transformações tecnológicas e organizacionais ocorridas com vista a uma melhor adaptação às exigências externas dos mercados. O novo paradigma organizacional seria o da especialização flexível por oposição ao modelo de produção taylorista-fordista, com pouca capacidade de oferecer resposta rápida às variações externas. A segunda procura apreender as alterações relativas às condições de emprego e de trabalho, compreendendo a capacidade de ajustar e alterar modos de recrutamento, de contratação e estatutos de emprego, de mobilidade interna e remuneração, de conteúdos de tarefas e qualificações, de tempos de trabalho e de níveis de protecção social” (Casaca, 2005).

Embora conceptualmente distintas, ao discurso do sucesso da flexibilidade produtiva foi sempre associada a necessidade de um novo marco de regulação laboral, de modo a que à nova empresa “flexível” se ajustasse um trabalhador igualmente flexível.
As duas últimas décadas, caracterizam-se assim por profundas alterações nas legislações nacionais visando a flexibilização das regras vigentes em ordem a favorecer a diversidade contratual. Este processo longo de transformação da arquitectura institucional das relações laborais conduziu paulatinamente à difusão da diversidade contratual. A flexibilidade laboral tornou-se protagonista central sendo objecto de discursos antagónicos, de cariz ideológico e económico, por parte de empresas, académicos, sindicatos e trabalhadores. Dado o seu carácter polissémico e proteiforme é um conceito que invoca diversas dimensões, interpretações e significados. Como tal, para além dos seus inúmeros defensores, não se encontra isento de críticas, de carácter instrumental, conceptual e ideológico.

Para Serge Paugam a situação de precariedade “caracteriza-se tanto por uma forte vulnerabilidade económica como por uma restrição, pelo menos parcial, dos direitos sociais, já que estes últimos são fundados em grande parte na estabilidade do emprego. O assalariado (precário) ocupa, por isso, uma posição inferior na hierarquia dos estatutos sociais definidos pelo Estado-providência” (Paugam, 2000).

(3) Os supranumerários são a multidão de excluídos da relação de emprego. No novo período o crescimento económico convive bem com a manutenção de um desemprego estrutural criando “inúteis para o mundo”. Estas “não-forças sociais” (Castel, 1998 [1995]) são os desempregados de longa duração, os pobres, todos aqueles grupos sociais que não têm capacidade de fazer ouvir a sua voz na denúncia da sua condição, e os quais têm muito poucas hipóteses de voltar a ser incluídos.

Este triptico salda-se no alargamento drástico da insegurança social, não apenas na dimensão objectiva do vínculo contratual, mas também na perspectiva subjectiva e nas trajectórias individuais dos trabalhadores. Não obstante a dificuldade na obtenção de dados fidedignos, os indicadores apontam fundamentalmente para trajectórias de mobilidade lateral e para uma fraca mobilidade ascendente de emprego. Estudos recentes em Portugal, comparando trabalhadores estáveis e precários, revelam uma realidade heterogénea, mas também algumas regularidades: são mais afectados os menos escolarizados, (embora o desemprego de licenciados seja uma realidade crescente) jovens e mulheres; são estes que apresentam um menor grau de satisfação, menor confiança no futuro profissional e maior vontade manifesta em mudar de emprego; são também os que apresentam níveis mais baixos de sindicalização.

Obstáculos e potencialidades
A classe trabalhadora “fragmentou-se, heterogeneizou-se e complexificou-se” ainda mais. Consequentemente, verificou-se a desagregação e fragmentação das identidades dos trabalhadores mercê de processos de crescente diferenciação, segmentação e flexibilização dos mercados de trabalho, a descentralização da produção e a precarização da relação salarial (Paugam, 2000).

Consequentemente os sindicatos têm demonstrado dificuldade em lidar com as mudanças ocorridas no sistema produtivo e como tal de adaptar a sua estratégia e organização às necessidades de grupos cada vez mais heterogéneos. A consequência mais visível disso é a diminuição do número de filiados, da sua influência social, e da eficácia do reportório tradicional da acção colectiva.

Naturalmente, o mundo do trabalho não saiu ileso desta transformação a todos os níveis histórica. O debate sobre a renovação da acção sindical tem tido pouco eco em Portugal. As reflexões e críticas sobre o seu papel têm partido mais das forças sociais que lhe são hostis, do que gerado por sua própria iniciativa. Encontra-se portanto num contexto defensivo face às sucessivas reformas governamentais, e à cultura patronal predominantemente anti-sindical. Para além disso, dado a sua principal capacidade de mobilização se centrar no sector público e (ainda) estável, sofrem de um crescente isolamento face ao discurso produzido que considera esses sectores como privilegiados e defendendo interesses corporativos.

Um primeiro aspecto deste debate é considerar que, embora os sindicatos tenham experimentado dificuldades, não lhes pode ser negado o carácter reflexivo de um actor social, que procura desenvolver novas perspectivas organizativas, politicas e ideológicas com vista a procurar manter o seu papel de representação dos trabalhadores assalariados. Importa portanto desconstruir a inevitabilidade das forças da globalização econômica, e o acantonamento do factor Trabalho ao rótulo de localizado, estático, conservador e defensivo na sua acção, por oposição ao Capital, caracterizado como global, dinâmico, criativo e ofensivo.

A distinção feita por Steven Lukes (1975) de três dimensões do poder pode servir para ilustrar a forma como o actor mais poderoso dentro de um sistema ocupa uma posição hegemónica, controlando a forma como esses assuntos e problemas são definidos e reflectidos. Tendo em conta esta perspectiva, os sindicatos, actualmente, possuem apenas a capacidade de assumir conflitos superficiais (1) com os empregadores e Estado sobre os termos das reformas neoliberais do mercado de trabalho e segurança social, não conseguindo desafiar quer a agenda de reformas (2) quer a ideologia neoliberal que lhes dá fundamento (3). Mas, e aí convergimos com Hyman (2001), trata-se, sobretudo, de poder influenciar o debate ideológico, ou seja, poder pesar na batalha das ideias. O desafio é, então, como retornar à ofensiva.

Em segundo lugar, estes debates, marcados por uma pluralidade de visões e orientações teóricas, sugerem uma nova estratégia de acção que expanda o sindicalismo para fora do seu campo tradicional de actuação, i.e., relações de produção e escala nacional. Trata-se afinal de recuperar alguns princípios que estiveram na génese do próprio sindicalismo: a luta pela inclusão dos trabalhadores como cidadãos de pleno direito e a solidariedade internacionalista.

De entre as concepções surgidas, a noção de sindicalismo de movimento social parece lidar com as transformações ocorridas e com os desafios que se colocam ao sindicalismo (Waterman, 2002). O alargamento do campo de acção significa, por um lado, conceber a prática politica de uma forma transescalar (dimensão “vertical”), considerando-os como espaços que não são mutuamente exclusivos, nem hierarquizáveis (Munck, 2002); e por outro lado, ao nível da agenda politica (dimensão “horizontal”), construindo campanhas dirigidas a sectores mais fragilizados da população trabalhadora, maior abertura a outras temáticas e aliança com novos sujeitos políticos e movimentos sociais.

Em terceiro lugar, a alteração do perfil de acção sindical, num contexto desfavorável de hostilidade patronal e governamental, deve corresponder a uma estratégia activa com repercussões ao nível das orientações políticas, mas também no que concerne à mudança organizacional, funcionamento democrático, alocação de meios humanos e recursos materiais, bem como renovação das formas de acção política.

Interrogações…
Que dizer então sobre a situação actual? Algumas questões se colocam de forma a reflectir mais concretamente sobre as dimensões acima abordadas.

Offe e Wiesenthal (1980), ainda sem grande percepção da “nova grande transformação” que se iniciava, falavam da dificuldade na agregação de interesses entre os trabalhadores. Enquanto que para os detentores do capital seria mais fácil definirem os seus interesses comuns (maximizar o seu retorno); os trabalhadores, homens e mulheres, mesmo quando unidos, continuam sendo indivíduos com necessidades e interesses diferentes, a partir dos quais uma nova identidade colectiva deve ser forjada.

Sendo a situação actual ainda mais complexa, importaria perguntar: Terá o decréscimo do número de sindicalizados sido revertido ou não? Em qualquer dos casos, será que as novas adesões se concentram em sectores e empresas com uma densidade sindical já elevada, ou se estendeu a outros de maior fragilidade? Será que existe uma estratégia clara por parte dos sindicatos de chegar a trabalhadores precários, renovando uma acção que se baseia actualmente mais na profissão que na condição de trabalhador? E relativamente a jovens, mulheres e trabalhadores imigrantes? Que argumentário, meios e recursos são empregues neste processo? A negociação colectiva procura abranger estes trabalhadores ou tem sido utilizada sobretudo para proteger os trabalhadores estáveis?
Num país com: (1) crescente precariedade laboral, elevada percentagem de população trabalhadora empregada pobre; desemprego estrutural, e significativa economia paralela; (2) em que existem elevados indicadores de desigualdade social, baixos níveis de protecção social e retracção da cobertura dos serviços públicos; (3) e uma crónica fraqueza dos seus movimentos sociais; o sindicalismo português se conduzisse uma reorientação estratégica, poderia servir de catalizador para a mobilização mais ampla na sociedade portuguesa, em torno de uma agenda política que vá para além da defesa dos sectores estáveis empregados. Importaria aqui questionar criticamente se têm havido iniciativas sólidas de articulação entre outras organizações sociais e políticas, bem como movimentos sociais. Qual a razão do impasse do Fórum Social Português? Porque será que as questões da precariedade têm tido mais visibilidade na opinião pública devido à acção de grupos informais de trabalhadores precários como o FERVE, o Precários Inflexíveis e a Parada Mayday? Não seria útil e necessária uma maior colaboração entre estes grupos e sindicatos num objectivo que lhes é comum?

Os tempos que se avizinham são ainda de dificuldade para o sindicalismo. A criatividade e um agudo sentido táctico e estratégico serão fundamentais para que recuperem a iniciativa e marquem indelevelmente a agenda política. Aqui, as palavras proferidas há mais de uma década por Boaventura de Sousa Santos parecem ter ainda uma actualidade gritante. “O novo sindicalismo tem de ser pragmaticamente de contestação e de participação. A opção entre uma outra estratégia será ditada pelos seguintes três critérios, dispostos por ordem decrescente de valência: (1) a opção que melhor evita a dessindicalização e o sindicalismo defensivo; (2) a opção que mais eficazmente divide os patrões em termos de adesão ao capitalismo civilizado; (3) a opção que garante a maior neutralidade possível de um Estado que nunca é neutral.” (Santos, 2004 [1995]).

Eppur si muove: Trabalho e sindicalismo no século XXI

Vírus #5 - Jan/Fev 2009

Jürgen Habermas diz-nos que o conceito de crise foi algo apropriado do léxico da medicina. Este, nesse contexto, pretende descrever a fase de um processo de enfermidade, em que não existe a certeza se o organismo possui forças ou não para recuperar a sua saúde. A este associa-se a ideia de um poder objectivo (externo) que provoca uma alteração do estado normal de saúde do organismo em causa; mas é também inseparável da percepção interna de quem padece desta. Uma crise arrebata ao sujeito uma parte da soberania que este normalmente possui. Acrescenta ainda que, quando concebemos algo como estando em crise, lhe atribuímos tacitamente um sentido normativo - a solução desta transporta em si a libertação do sujeito afectado. (Habermas, 1973: 15)

O vocábulo da crise tem tido um uso recorrente nas mais diversas áreas dos sistemas societais. Esse epíteto tem sido aplicado igualmente ao sindicalismo mercê das convulsões que vive(u), desde os anos 70, decorrentes da "nova grande transformação" (Munck, 2002:1). Utilizando ainda a metáfora médica, esta "nova grande transformação" constituiria o elemento externo causador da crise de que padece o nosso organismo.

O Estado normal de saúde é o período do capitalismo organizado (Lash, Urry, 1987; Offe, 1989) em que se assiste à constituição de sistemas de relações laborais tal como os conhecemos: reconhecimento da liberdade de representação dos trabalhadores, negociação tripartida, institucionalização dos conflitos de classe. Os trabalhadores nos países ocidentais saíram reforçados no pós-guerra. Os níveis de sindicalização subiram quantitativamente, bem como um reforço de confiança geral na capacidade da classe operária organizada de conduzir os destinos da sociedade em nome de um bem comum. Um novo compromisso entre Capital e Trabalho teria que substituir o laissez-faire do dogma económico: em troca de aumento dos salários reais associados à produtividade e do Estado-Providência, os sindicatos comprometiam-se com a paz social, e com um modo de regulação capaz de acomodar um crescimento longo e sustentado das economias capitalistas ocidentais.

O pano de fundo desta discussão é então a acentuação dos processos de globalização económica com a financeirização da economia, hipermobilidade do capital, erosão da esfera de regulação nacional, quebra do compromisso político capital-trabalho e dos pilares da relação salarial Fordista e concomitante alteração no ambiente regulatório, o que gerou uma vulnerabilização generalizada dos trabalhadores, bem como das suas expressões organizadas - os sindicatos.

Uma das contradições existentes do período actual decorre exactamente do facto de a lógica de produção e de acumulação se ter transnacionalizado, enquanto que a lógica da regulação social se manteve enraizada na territorialidade do Estado-Nação. O crescimento das interacções transnacionais causou processos de erosão dos Estados-Nação. Por um lado, o Consenso do Estado Fraco (Santos, 2001) conduziu, na escala nacional, à transferência de competências de regulação social para actores não estatais. Na escala global, a predominância da liberal governance. (Duffield, 2001) resulta que não se tenham desenvolvido mecanismos globais de regulação dos impactos da Globalização Económica. Face às transformações verificadas o sindicalismo manteve-se fortemente ancorado à esfera de regulação do Estado-Nação e a uma praxis organizacional nacional.

A enumeração dos sintomas da crise não constitui igualmente novidade: perda do número de membros, diminuição da densidade sindical, da actividade grevista e de outras expressões directas de militância sindical. Por outro lado, a desagregação e fragmentação das identidades dos trabalhadores mercê de processos de crescente diferenciação, segmentação e flexibilização dos mercados de trabalho, da descentralização da produção ou da precarização da relação salarial; bem como a crescente ausência de lealdade e solidariedade dos trabalhadores aos sindicatos, como reflexo da emergência do individualismo contemporâneo que orienta os trabalhadores para interesses mais amplos e diversificados; tem conduzido a uma crise de representatividade social - que se traduz na dificuldade que os sindicatos sentem em congregar trabalhadores para as suas acções de mobilização. (Costa, 2005)

Um outro aspecto importante prende-se igualmente com a centralidade política da classe trabalhadora, algo inquestionável durante o período anterior. Na sociedade pós-industrial de Alain Touraine (1969) ou informacional de Manuel Castells (1999) a classe trabalhadora deixa de ter um papel importante enquanto sujeito-emancipador. A capacidade de mudança adviria sobretudo de movimentos identitários, não baseados em classe, decorrentes de novas clivagens surgidas nas sociedades capitalistas avançadas. Urge então colocar a interrogação. Existe uma saída para a crise do movimento sindical e de trabalhadores à escala mundial, ou está vaticinado à redução numérica e perda de relevância política?


Declínio (in)evitável?

Um outro ponto de partida para iniciar a resposta a esta questão, e que assumimos neste texto, é o de que se deve enquadrar esta análise numa moldura analítica historicamente mais longa e geograficamente mais ampla do que normalmente se faz.

Segundo Beverly Silver (2005) foram adoptadas um conjunto de quatro soluções como parte integrante das estratégias capitalistas para a manutenção da lucratividade e controlo sobre os trabalhadores. A primeira, chamada de solução espacial, reporta-se à deslocação sucessiva dos espaços produtivos para localizações geográficas livres de organização sindical. A segunda, ou solução tecnológica/organizacional, corresponde à introdução de um conjunto de inovações a este nível que reduzisse a autonomia e controle da produção por parte dos trabalhadores. No entanto, em ambos os casos, estas mudanças lograram gerar novas classes trabalhadoras e novas formas de organização e protesto. Por um lado, a expansão do capital leva sempre consigo o conflito para os novos espaços produtivos; por outro, o processo de criação e decomposição da classe trabalhadora, transfere a coluna vertebral do sindicalismo dos trabalhadores de ofício do séc XIX, para o operário-massa semi-qualificado do séc XX.

Cumulativamente, verifica-se o que a autora designa como solução de produto, que consiste na transferência do capital para linhas de produtos e indústrias mais inovadoras como forma de lidar com a diminuição da taxa de lucro. Seguindo uma linha cronológica, a indústria do século XIX teria sido a têxtil enquanto que o sector típico do século XX foi decisivamente o automóvel.

Finalmente, a solução financeira. Com esta pretende-se ilustrar a recorrência histórica da rápida transferência do capital da actividade produtiva para o campo financeiro em momentos de crise de lucratividade, o que procura acentuar que a financeirização da economia ocorrida a partir dos anos 70 não constitui uma singularidade histórica.

Em síntese, esta percepção da evolução da geografia histórica do capitalismo (Harvey, 1992: 307), com a sua dinâmica de criação e destruição de espaços produtivos e classes trabalhadoras, enfatiza a noção de que o trabalho e os movimentos operários são feitos e refeitos em relação estrita com as dinâmicas espacio-temporais do capitalismo. Tal conduziu igualmente a uma oscilação periódica entre fases de (des)mercadorização do trabalho.

Louçã (2008: 128-129), noutro registo, segue a tese de Hobsbawm da existência de períodos de maior concentração da conflitualidade social. Partindo de uma periodização histórica da evolução do capitalismo com base nos ciclos longos de Kondratiev, as fases de expansão deste caracterizam-se por uma maior força sindical que permite tendências de desmercadorização do trabalho. Pelo contrário, em momentos de transição entre ciclos, o ajustamento ao novo paradigma - que, na terminologia neo-schumpeteriana se designa como - tecnoeconómico, gera um enfraquecimento do factor trabalho reforçando dinâmicas de remercadorização. Em ambos os momentos podem-se identificar lutas operárias, sendo no primeiro caso predominantemente ofensivas, enquanto que no segundo sobretudo defensivas.

Voltando a Silver, a resistência operária, tal como o Capital, oscila então num pêndulo polanyiano e marxiano. A autora concretiza: "Agitações do tipo polanyiano são contra-ataques à expansão do mercado global auto-regulado, especialmente da parte das classes trabalhadoras que estão sendo desfeitas e dos trabalhadores que se beneficiavam de pactos sociais que são abandonados pelos de cima. Agitações do tipo marxiano significam lutas das novas classes trabalhadoras implementadas e fortalecidas sucessivamente como consequência não-intencional do desenvolvimento do capitalismo histórico, ainda que simultaneamente ao desaparecimento das antigas classes trabalhadoras." (Silver, 2005: 35)

Se existe uma recorrência histórica, convém no entanto não cair em quaisquer tipo de determinismos. Mas parece evidente que uma primeira tarefa analítica consiste na desconstrução do acantonamento do factor Trabalho ao rótulo de localizado, estático, conservador e defensivo na sua acção, por oposição ao Capital, caracterizado como global, dinâmico, criativo e ofensivo. A resposta por parte da classe trabalhadora e do sindicalismo dependerá da sua própria acção e agência.

Se a dinâmica de desenvolvimento do capitalismo é desigual, a crise e renovação da acção sindical também o é. Decorrendo do que foi referido anteriormente, os novos territórios produtivos localizados fora dos países centrais geraram movimentos sindicais novos e combativos. É plausível assumir que novas deslocações da produção terão como consequência a insurgência trabalhista nesses novos espaços. O grosso da crise é então característica dos países capitalistas avançados que assistiram as vagas sucessivas de soluções espaciais, tecnológicas, e de produto. Uma consequência notória foi a desestruturação da espinha dorsal do sindicalismo, sem que este se tenha conseguido expandir de forma bem sucedida para novos sectores económicos, localizados predominantemente em actividades da nova economia dos serviços.

A dimensão internacionalista esbarra ainda com uma acção sindical primordialmente direccionada para a esfera nacional. O internacionalismo operário, concebido como comunidade de interesses organizado enquanto classe em torno dos sindicatos, superando as rivalidades do sistema inter-estatal, constituiu uma realidade episódica. De facto a vinculação do sindicalismo aos espaços nacionais decorreu da organização da esfera da regulação social no quadro do Estado-Nação, sucumbindo em alguns momentos importantes aos interesses das suas burguesias nacionais.

A globalização da produção trouxe visões optimistas de uma nova tendência para a criação de uma classe trabalhadora mundial única e homogénea, experimentando as mesmas condições de vida e de trabalho. Subsistem no entanto diferenças importantes decorrentes da divisão Norte-Sul, inserção diferenciada dos países na economia mundial, regimes de regulação diversos, entre outros factores. "Tendo presente que a luta por melhores condições salariais num determinado pais pode significar a degradação da relação salarial ou mesmo o aumento do desemprego noutro pais, é legitimo pensar que os discursos da solidariedade operária internacional podem ser geradores de contrariedades e de conflitos entre diferentes países e sectores do movimento operário internacional " (Santos, Costa, 2004: 20-21)

Assim a promessa de um novo internacionalismo, num contexto de maior integração económica esbarra com alguns obstáculos. Boaventura de Sousa Santos e Hermes Costa identificam alguns destes. Para além dos resultantes das transformações estruturais referidas anteriormente, identificam outros factores inibidores da cooperação fora dos espaços estritamente nacionais, que se prendem com a (ainda) priorização da escala nacional, limitações financeiras, escassa teorização sobre o tema resultante igualmente de poucas experiências concretas ao nível internacional, a in/existência de uma identidade sindical transnacional entre trabalhadores, a forte oposição/resistência patronal. (Santos, Costa, 2004: 21)

Os debates em torno da renovação do sindicalismo, marcados por uma pluralidade de visões e orientações teóricas, sugerem uma nova estratégia de acção que expanda o sindicalismo para fora do seu campo tradicional de actuação, i.e, relações de produção e escala nacional. Trata-se afinal de recuperar alguns princípios que estiveram na génese do próprio sindicalismo: a luta pela inclusão dos trabalhadores como cidadãos de pleno direito e a solidariedade internacionalista. Mas existirá um novo tipo de sindicalismo para novos tempos?


Um novo tipo de sindicalismo?

Uma das tipologias do sindicalismo mais utilizadas é a proposta clássica de Alain Touraine (1970), que distingue entre sindicalismo de oposição, sindicalismo de controlo e sindicalismo de integração (associado ao poder). Entre nós, a diferenciação entre sindicalismo de contestação e sindicalismo de negociação (Lima, 1991; Santos, 1995; Rosa 1998) segue no mesmo sentido, num momento em que a noção de sindicalismo de integração perdia relevância empírica com o desaparecimento dos regimes do leste europeu. Mais recentemente, Richard Hyman (2001), referindo-se ao sindicalismo europeu, enfatiza a sua pluralidade, assumindo uma multiplicidade de formas organizacionais e orientações ideológicas. Esta variedade empírica procurou ser traduzida em tipologias ou modelos de análise que tivessem capacidade de a descrever. Assim o autor, cruzando as dimensões ideológica e de prática societária, caracteriza o sindicalismo como um produto do triângulo mercado/sociedade/classe. Uma outra distinção útil para a nossa discussão é a que diferencia entre sindicalismo económico e sindicalismo político. (Scipes, 1992a, Lambert e Webster, 1988).

Mais recentemente, a noção de Sindicalismo de Movimento Social2 foi desenvolvida por académicos progressistas num esforço de compreender o aparecimento de movimentos sindicais militantes, em diferentes regiões da economia capitalista mundial, com estratégias de acção semelhantes. Para ser mais concreto, estes movimentos emergem nos chamados países semi-periféricos, como a África do Sul e Brasil nos anos 70, Filipinas e Coreia do Sul nos anos 80. (Munck 2002; Lambert e Webster, 1988; Moody, 1997; Scipes, 1992a; Seidman, 1994, Waterman, 1993).

Embora tivesse sido utilizado inicialmente por Rob Lambert e Eddie Webster referindo-se ao contexto sul-africano, é pacifico afirmar que este foi mais coerentemente enunciado por Peter Waterman, já em finais dos anos 80. Tal como muitos outros debates teóricos, a utilização do conceito revestiu-se de diversas interpretações bem como de formulações diferenciadas, embora não contraditórias.

Estes países de chamada industrialização tardia eram ainda conduzidos por governos ou regimes autoritários. Assim, a emergência de uma forte organização do local de trabalho, produto directo da sua recente industrialização, evoluiu rapidamente de reivindicações centradas no chão-de-fábrica para outras envolvendo a sua comunidade de inserção. A criação de alianças fortes entre o movimento sindical e grupos comunitários rapidamente escalou para um confronto directo com o Estado numa tentativa de democratização dos diversos regimes políticos.

A obra de Kim Moody "Workers in a Lean World" popularizou de alguma forma o SMU. Dado o sucesso desse tipo de acção sindical em diversas partes do globo verificou-se uma tentativa de transplantar tal modus operandi para os países do Norte. Assim algumas obras e autores procuram identificar características deste perfil em diferentes sindicatos como os Canadian Auto Workers Union, no fim dos anos 90, ou na Campanha Justice for Janitors nos Estados Unidos. (Moody, 1997)

Waterman distingue claramente, no seio deste debate, entre dois tipos de abordagens. A primeira, divulgada por Lambert e Webster e popularizada por Moody, que define como se centrando no eixo classe/popular e a sua, que enquadra no referencial de classe/novos movimentos sociais.

Retrospectivamente, a descrição das experiências do Brasil, Africa do Sul, Filipinas, entre outras enfatizava a capacidade da classe trabalhadora (fordista, mas também recente naqueles países) ter logrado se associar a outros sectores da sociedade, e, com essa aliança permanente, abordando temáticas internas e externas à fabrica, produção e reprodução, economia e politica, ter afrontado o despotismo patronal, intimamente relacionado com os regimes políticos estatais.

A crítica dirigida a Lambert e Webster, por Scipes por exemplo, é que a sua proposta assumia ainda uma concepção clássica do que é a classe trabalhadora. Deste modo, sem uma reconceptualização desta, uma política de alianças com a comunidade seria apenas a soma de dois sujeitos e não a criação de um nível superior de entendimento e de acção. (Scipes, 1992a: 14) O autor critica ainda o facto de esta visão ignorar a pluralidade identitária da classe trabalhadora, limitando assim as suas lutas ao local de trabalho, distribuição e consumo não logrando (a classe trabalhadora) questionar a esfera produtiva da sociedade como um todo.

Waterman subscreveria esta crítica, mas leva-a mais longe. A sua proposta visava ser, de alguma forma, uma elaboração teórica com base nas novas dinâmicas de luta social e de internacionalismo operário que emergiram nas décadas de 80 e 90. E como tal partia, à semelhança de outros autores, das experiências do Brasil, Africa do Sul, Filipinas, entre outras. No entanto, mais do que identificar determinados sindicatos como modelos de SMU, o seu propósito era mais direccionado para a realização de uma critica do sindicalismo realmente existente. Visava assim a promoção da discussão teórica e não o uso, que se generalizou, mais descritivo e positivo, senão mesmo celebratório deste conceito. (Waterman, 2004: 222)

Tal situação resultou numa dupla erosão do potencial crítico do conceito de sindicalismo de movimento social. Em termos empíricos, as organizações tomadas como referências modelo (como a COSATU3 na África do Sul, CUT4 no Brasil, KMU5 nas Filipinas) perderam grande parte das suas propriedades iniciais de SMU, não resistindo ao impacto da reestruturação neoliberal das relações laborais. A associação do conceito a tempos/lugares/casos concretos teria o efeito negativo de o condenar a uma inoperância enquanto instrumento de análise e de função critica.

Em termos teóricos, Waterman considera que o principal problema de muitos desses autores é o de existir uma ainda evidente identificação com a chamada classe trabalhadora (fordista) industrial/nacional. Este enfoque conduziria a um demasiado centramento na concepção clássica de vanguarda dos trabalhadores industriais fordistas, que conseguiam, por sua iniciativa federar o descontentamento social em alianças sindicais/populares. O entendimento do autor é outro. A sua formulação baseia-se fundamentalmente numa síntese da teoria socialista sobre os sindicatos com teorizações do campo dos novos movimentos sociais. (Waterman, 2004: 220-221)

Daqui decorrem dois aspectos da teoria de Waterman enfatizados por Scipes (1992b). Em primeiro lugar, a ideia de que concebe o SMU não só como um modelo diferente de sindicalismo, mas que resulta também de um diferente entendimento da classe trabalhadora e das suas formas de organização na luta pela transformação da sociedade. Segundo este prisma as lutas de trabalhadores constituem uma entre outras lutas políticas legítimas. Tal permitiria, por um lado, criar condições para a realização de alianças igualitárias entre todos aqueles que lutam pela mudança de relações desiguais de poder, e por outro ao não confinamento das lutas de trabalhadores ao local de trabalho e nem à imagem heróica do trabalhador industrial do sector formal da economia.

Em segundo lugar, a necessidade de superar a concepção leninista sobre o sindicalismo enquanto limitado à esfera da reivindicação económica, e que atribui ao partido de vanguarda a esfera da luta política e de condução dos sindicatos no sentido de uma transformação societal mais ampla. Uma critica ao leninismo permitiria romper com a distinção binária entre o campo político e económico, bem como com a tutela hierárquica entre partido e sindicato, fazendo este último recuperar a sua autonomia, democracia e uma vocação de intervenção que transcende essas dicotomias.

Assim, de entre as concepções surgidas, a noção de sindicalismo de movimento social parece lidar com as transformações ocorridas e com os desafios que se colocam ao sindicalismo. (Waterman, 1993; Moody, 1997; Munck, 2002) O alargamento do campo de acção significa, por um lado, conceber a prática política de uma forma transescalar (dimensão "vertical"), considerando-os como espaços que não são mutuamente exclusivos, nem hierarquizáveis (Munck, 2002:160); e por outro lado, ao nível da agenda política (dimensão "horizontal"), construindo campanhas dirigidas a sectores mais fragilizados da população trabalhadora, maior abertura a outras temáticas e aliança com novos sujeitos políticos e movimentos sociais. (Moody, 1997; Wever, 1998)

Duas notas finais. A ênfase dada na articulação com os Novos Movimentos Sociais (NMS) prende-se mais com o enriquecimento da teorização da renovação sindical e da abertura do seu campo de possibilidades, do que com um imperativo concreto de aliança em todos os contextos com movimentos sociais no terreno. Existem situações de facto, em que, face à debilidade dos NMS´s, a única força organizada presente são os sindicatos. Uma situação como essa não exclui no entanto a possibilidade de uma renovação da acção sindical orientada pelo SMU. Por fim, autores como Waterman procuram não confinar a sua teoria ao espaço industrial/nacional, atribuindo importância fulcral à dimensão transnacional, para que o novo internacionalismo não seja uma soma entre SMU´s nacionais, nem fique preso a um lugar ou um período em particular. (Waterman, 2004: 221-223)

O sindicalismo move-se, por vezes não tão rápido quanto o necessário, mas move-se. O sindicalismo de movimento social, não sendo um modelo acabado que direccione o sentido desse movimento, pode constituir uma referência importante de análise e reflexão que restaure a soberania perdida resultante da sua crise. Subscrevemos Hermes Costa quando afirma que "mais do que remeter para uma prática ou conjunto de práticas consolidadas, esta concepção como que sugere uma necessidade ampla de repensar a actividade sindical em geral. Nesse sentido, poderá mesmo ser vista como uma espécie de guia orientador para a renovação do sindicalismo, embora não colida com outras tipologias. Em todo o caso, distintamente das tipologias anteriores, o sindicalismo de movimento social não experimenta apenas a relação do sindicalismo consigo mesmo, mas sim com o "exterior" do próprio sindicalismo." (Costa, 2005:63-64)

Entre a festa e o sacrifício

Texto de Hugo Dias sobre o livro "A Esquerda Radical" de Miguel Cardina.

Vírus #9 - Maio/Jun 2010

«A Esquerda Radical» transporta-nos para o contexto de radicalização política dos anos sessenta e setenta e para a constelação de reflexões ideológicas, práticas políticas e cambiantes organizativas que deste emergiram. Trata-se de uma obra concisa, não fosse ela parte de uma colecção intitulada «Biblioteca Mínima», mas plena de densidade e rigor histórico, que procura reconstituir a trajectória destas esquerdas, detendo-se, com particular atenção, na realidade portuguesa que antecede o 25 de Abril.

O primeiro capítulo procura delinear os grandes traços característicos da esquerda radical, «anotando os veios fundamentais de um complexo ideológico que oscilou precisamente entre a festa e o sacrifício, o prazer e o ascetismo, a renovação teórica e a rigidez retórica». Não obstante a pluralidade, «um notório jogo de semelhanças agrupava esse feixe plural, suportado na crítica aos partidos comunistas tradicionais, na activação de um internacionalismo de novas cores e na tentativa de alargamento do «político» a domínios considerados pouco antes como exclusivamente privados».

O restante da obra centra-se na singularidade histórica portuguesa, onde a constituição da diversidade de matizes políticos da esquerda radical se faz necessariamente no debate sobre as estratégias de luta contra o Estado Novo e (posteriormente) a Guerra Colonial, e no recrudescimento da contestação operária e estudantil; nos ecos da radicalização politica internacional e na sua tradução para o contexto nacional, cerzindo de forma singular a «tensão entre uma ambiência mais libertária proveniente do radicalismo da época e as necessidades e virtualidades da rigidez organizativa, frequentemente transmutadas do campo da política para o campo da moral e dos costumes», o «mudar a vida» de Rimbaud e o «mudar o mundo» de Marx; na definição político-ideológica e construção organizativa, reflectindo cismas internacionais e «geografias imaginadas», em ruptura e demarcação com a tradição do Partido Comunista Português.

O capítulo «O Maoísmo em Portugal» é um laborioso rastreio da diversidade das expressões públicas desta corrente, com particular destaque para três percursos específicos: o de Francisco Martins Rodrigues, com a sucessiva criação da FAP, CMLP e fundação do PCP (m-l) em 1970; do MRPP, no mesmo ano; e da OCMLP em finais de 1972. A inclusão de um diagrama das «organizações maoistas em Portugal» torna-se numa ajuda inestimável para uma melhor percepção da cronologia e das interelações existentes no turbulento complexo maoista português. Em «as outras correntes», agrupa, mais por «comodidade expositiva do que pela partilha de um substrato ideológico comum» o percurso da família política trotskista, das expressões do anarquismo, do «socialismo radical», e dos grupos adeptos da luta armada.

«A Esquerda Radical» é, portanto, um livro de referência para os interessados pela temática, numa edição sensível ao pormenor da Angelus Novus.